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Há estudantes que, desde os dez anos de idade, aprendem uma língua morta, o latim. Outros sabem de cor quem são Zeus, Deméter ou Hades e escrevem em grego os nomes do pai, da mãe e do gato. São uma raridade em Portugal, como são as línguas clássicas nos currículos nacionais.

De mãos fechadas junto ao peito, numa pose educada e formal, Henrique, de 12 anos, dirige-se ao P2: “O que é que achou?”. A pergunta é feita assim que a aula de Latim termina. E é-lhe devolvida, mas reformulada. “O que é que acha de estar a aprender Latim? É importante?”. O rapaz responde: “Sim, para sabermos a origem da nossa língua. Além disso, o Latim é usado nas igrejas mais antigas”.

À última hora da tarde, à terça-feira, os alunos do 6.º D do Colégio de São Tomás têm Latim na Sala S. Bento. Cada sala, desta escola de inspiração católica, tem o nome de um santo. No Colégio Rainha Santa Isabel, em Coimbra, a disciplina chama-se Raízes Greco-Latinas e os estudantes aprendem cultura, mitologia, civilização e etimologia do grego e do latim no 5.º e 6.º ano; no 7.º e 8.º têm Latim.

Quer numa escola, quer na outra, aprende-se Latim nos 2.º e 3.º ciclos, do 5.º ao 8.º ano. Também no Colégio Nossa Senhora da Assunção, em Anadia, da mesma congregação religiosa que a escola de Coimbra, se ensina a língua clássica em disciplinas oferecidas como enriquecimento curricular e em que os alunos são avaliados, mas as suas notas não contam como as das disciplinas obrigatórias.

São excepções no país, quando, na maior parte das escolas públicas, só os alunos do secundário que optam pelo curso científico-humanístico de línguas e literaturas, a partir do 10.º ano, é que têm Latim.

As línguas clássicas fazem falta no currículo dos alunos? Estes colégios de inspiração católica acreditam que sim. Maria da Glória, a directora do Rainha Santa ainda se lembra de como, há uma década, quando revelou aos pais a intenção da escola oferecer uma disciplina que explorasse a cultura greco-latina, os encarregados de educação torceram o nariz e “ficaram assustados, mas, quando começaram a ver que os miúdos tinham boas notas, descansaram”. “Eles lambem-se por isto! Gostam muito”, assegura, divertida, referindo-se aos alunos mais novos.

Para Ana Correia da Silva, coordenadora de Latim no São Tomás, “a necessidade de nos adaptarmos ao mundo moderno não nos pode fazer esquecer que as raízes e a tradição clássica da cultura europeia têm na língua e cultura latina a sua matriz”.

Os atributos dos deuses

Numa das salas de 5.º ano do Rainha Santa, em Coimbra, a professora Gabriela Barroso de Almeida mostra uma imagem dos deuses gregos no Olimpo. “Número 1, quem é este deus?”, pergunta a professora que identifica os alunos pelo número e não pelo nome. O aluno número 1 responde: “Apolo”. “Qual é o seu atributo?”. “A lira”, responde o rapaz. “Número 2?”, continua a professora. E os meninos de dez anos desfiam os nomes e os atributos dos deuses: Posídon, Atena, Afrodite, Ares, Deméter, Hera, Zeus… “S”tora, ainda falta um deus”, diz uma vozinha, do fundo da sala. “É Hermes e tem umas sandálias”, continua, enquanto a professora procura na imagem o deus em falta.

De seguida, os estudantes têm que descobrir as divindades representadas na arte grega, na cerâmica e na estatuária. E a professora continua a chamá-los pelos números, para que todos respondam. “S”tora, saltou o cinco…”, aponta a mesma menina, atenta a tudo o que se passa.

“Cronos é…”, pergunta a professora, deixando ficar a voz suspensa, à espera que alguém complete a resposta. “… o deus do tempo”, respondem alguns alunos, em simultâneo. “Com a palavra cronos podemos escrever…”, a professora volta a usar o mesmo método. “Cronologia… Cronómetro”, dizem dois ou três rapazes. “E tudo isso tem a ver com o tempo, não tem?”, pergunta a docente. “Sim”, respondem os meninos, deixando prolongar a sílaba. Há olhares que se encontram, divertidos, como se tivessem feito uma descoberta enorme. E fizeram.

A etimologia das palavras é importante para que os alunos aprendam português e não só, lembra a directora, religiosa da congregação de S. José de Cluny e antiga professora de Português. “É importante para as ciências, para compreenderem o significado das palavras”, aponta Maria da Glória.

Quando os alunos chegam ao secundário, seja na área das ciências, seja na das línguas e literaturas, as palavras soam-lhes menos estranhas porque conhecem a sua origem, explica a professora Ana Miguel de Paiva. Afinal, os nomes das espécies animais e vegetais são todos em latim.

Hoje, os alunos do 6.º ano estão a aprender os radicais das palavras. Os manuais, fichas e outro material escolar, bem como os programas para as duas disciplinas – Raízes Greco-Latinas e Latim -, foi todo criado pelas professoras Ana Miguel Paiva e Gabriela Barroso de Almeida.

“Quantos radicais tem a palavra “ortopedista”?”, pergunta Ana Miguel Paiva. Os alunos sublinham, os rapazes a preto e azul, as raparigas a rosa, laranja, verde… “”Orto”, que significa “correcto”; “ped” que no latim quer dizer “pé” e no grego “criança””. Marcos está no quadro a deslindar as palavras. Nos seus lugares, os colegas fazem o mesmo para “otorrinolaringologista” e “pneumologista”.

Também já aprenderam o alfabeto grego e perdem-se a escrever todos os nomes, do pai, da mãe, do tio, da avó, do cão.

Latim de regresso?

No São Tomás, em Lisboa, também são os professores que têm vindo a construir os materiais para as aulas, com base em manuais estrangeiros, “sobretudo alemães, mas também ingleses, franceses e italianos, países em que o ensino do Latim se encontra largamente difundido e onde se assiste a uma revalorização da tradição clássica”, informa Ana Correia da Silva. No Colégio de São Tomás existem quatro professores a leccionar a disciplina.

É um facto, no resto da Europa: o Latim está de regresso às escolas. No ano passado, numa sondagem feita em mil escolas britânicas, 75 por cento dos pais e professores consideravam importante a reintrodução do Latim nas salas de aula. Em Setembro, um grupo de investigadores e professores universitários britânicos apelaram ao Governo para introduzir a língua no currículo do 1.º ciclo, como primeira língua estrangeira a aprender.

“Queremos que as nossas crianças sejam confiantes na sua capacidade de falar com britânicos e com estrangeiros; que se sintam confortáveis num mundo diverso e desenvolvido. No coração dessa aspiração está a sofisticação linguística”, escreveram Christopher Pelling e Llewelyn Morgan, dois classicistas da Universidade de Oxford numa carta dirigida ao responsável máximo pela Educação, do Reino Unido, citados pelo The Independent.

“A cultura europeia assenta nas bases greco-latinas e as pessoas perderam muitas dessas referências com o desaparecimento do Grego e do Latim dos currículos”, concorda José Luís Brandão, professor da Universidade de Coimbra. À instituição chegam alunos que nunca tiveram Latim no secundário. Por isso, o professor critica o facto de, em termos políticos, se “tentar suprimir do ensino tudo o que tenha um certo grau de dificuldade”. “O saber é que permite desenvolver competências, não o facilitismo”, sublinha.

Sem sucesso, o P2 perguntou ao Ministério da Educação se existe a intenção de introduzir a disciplina em ciclos anteriores ao secundário, se tem conhecimento de escolas onde se ofereça a disciplina a alunos mais jovens.

In horto est

Um estudo feito nos EUA, há um ano, concluiu que as crianças de meios desfavorecidos que aprenderam latim tiveram melhores resultados nas línguas e também na Matemática, do que as que não aprenderam.

No Colégio de São Tomás, na aula do 6.º D, o professor Gabriel ensina os complementos circunstanciais de lugar e de tempo. Mais concretamente o caso ablativo. “In horto est”, escreve no quadro. José Pedro identifica que “horto” é o “ablativo singular da palavra hortus”, que significa jardim: “Ele está no jardim”, traduz.

“Ex horto venit”, escreve o professor, explicando que se escreve “ex” sempre que a palavra seguinte começa com vogal ou com “h”. “Tal como no inglês se usa o “a” e o “an”?”, pergunta um aluno. “O inglês é uma língua bárbara”, brinca o docente, para confirmar que se usa da mesma maneira.

“Ele vem da horta”, traduz uma aluna. “Não! Do jardim!”, corrigem alguns, em unísono. “Sim, do jardim… Como é que se diz horta?”, pergunta José Maria – aluno de 20 valores, confidencia o professor, mais tarde. “Campus”, responde outro colega.

A aula continua. Depois de aprendidos os complementos, é tempo de traduzir um texto, que continuará a ser trabalhado em casa. Os alunos arrumam as mochilas e endireitam as carteiras antes de saírem. Faz parte das suas tarefas. “Quando estamos a escrever em português, percebemos melhor o significado das palavras”, diz Carlota. A amiga Marta gosta de Latim porque “é muito parecido com o português”. “Ajuda a desenvolver melhor o português”, acrescenta Mafalda. José Maria confessa que gosta muito: “É importante para falarmos sem que os outros nos entendam!”, como se fosse uma espécie de código que só eles sabem.

A estrutura gramatical do latim permite aos alunos compreender como é que funciona a gramática portuguesa. Por vezes, estes chegam ao ensino superior sem noção dos tempos verbais, nota José Luís Brandão, de Coimbra. Mas o Latim serve para muito mais: “O Latim é a matemática das línguas. É um óptimo exercício mental. Em termos de estruturação do pensamento, é determinante, assim como para o rigor do trabalho”, enumera o professor.

Além da língua materna, o latim ajuda os alunos na Matemática, na História, nas Ciências Naturais e noutras competências básicas, aponta John Gruber-Miller, professor de Estudos Clássicos, na Universidade do Iowa, nos EUA, citado pelo The Gazette. “Alunos do 6.º ano que estudam Latim durante 30 minutos por dia, ao longo de cinco meses, ganham nove meses de avanço [em relação aos outros estudantes] na resolução de problemas de Matemática, um ano na leitura, oito meses no conhecimento do mundo”, escreve, com base num estudo feito em Indianapolis.

“A minha esperança é que, como andamos sempre dez anos atrasados [em relação aos outros países], as pessoas acordem e vejam que amputámos estas gerações de um conhecimento fundamental”, aponta Cristina Pimentel, directora do Centro de Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa. “O rigor mental que se adquire com o Latim é importante para os alunos estruturarem o raciocínio”, acrescenta.

“É uma mais-valia para os alunos estudarem outras disciplinas”, reconhece José Luís Brandão. Quando os alunos do Rainha Santa chegam ao 9.º ano, a sua relação com Os Lusíadas é mais simples do que se não tivessem tido Raízes Greco-Latinas, dizem as professoras. Eles recordam a mitologia grega e lembram-se de pormenores que deixam os docentes de Portugês admirados, testemunham.

Os alunos falam dos mitos, como o de Orfeu e de Eurídice, das lendas, como a do Minotauro. O que aprendem também é útil para História, já que os estudantes de Coimbra aprendem sobre a vida quotidiana dos gregos e romanos, a história da fundação de Roma ou a guerra de Tróia. “Às vezes torna-se difícil orientar o entusiasmo deles. Passam a olhar de maneira diferente para a arte, para os filmes. Treinam o raciocínio e reflectem o que vêem”, dizem as professoras de Coimbra.

Em Lisboa, o Centro de Estudos Clássicos promove uma semana de Latim no Verão para as crianças dos sete aos 14 anos.

Em resumo, o latim tem “a vantagem de desenvolver o raciocínio lógico e o rigor analítico, instrumentos que serão úteis ao longo do percurso escolar, académico e profissional”, considera Ana Correia da Silva, do São Tomás.

Mas não é fácil, reconhece José Luís Brandão. “O latim é de grandes amores e de grandes ódios”, conclui.

Por Bárbara Wong, in Público – 2011/03/12

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