Esta exclusão não pode continuar a ser uma realidade silenciosa e silenciada. Nem os media, nem os dirigentes políticos, locais e nacionais, ninguém pode dizer que ignora.

Esta é uma daquelas frases que eu não esperava vir a escrever. Mas a realidade impõe-­‐se e a fantasia sobre a realidade acaba sempre por sair muito cara, geralmente aos mais frágeis.

Isto acontece na minha cidade, no Porto. Não é um caso aqui e outro ali. É uma prática generalizada e grave, muito grave. Atualmente, tenho um conhecimento mais profundo desta realidade por força do trabalho que realizamos na cidade, seja com “escolas TEIP” seja indo ao encontro dos adolescentes que as escolas vão deixando pelo caminho, na margem de tudo, e propondo-­‐lhes um outro modo escolar de aprender, de se descobrirem e de ganharem forças para realizarem um projeto para a sua vida (projeto Arco Maior).

Muitos destes adolescentes arrastam nas suas costas rejeições sistemáticas de matrículas em escolas públicas e, em alguns casos, rejeições repetidas por várias escolas, num mesmo ano letivo. Claro que os adolescentes de que falo não são uns “santinhos”, têm percursos de insucesso escolar, de indisciplina e de muita desorientação. Mas estiveram sempre no sistema escolar, pelo menos desde os 6 anos, e ainda assim querem matricular-­‐se de novo. E andam pela cidade, de Anás para Caifás. Quando conto isto a alguém, a resposta é sempre a mesma: eu sei (e encolhem-­‐se os ombros).

No entanto, percorro documentos oficiais, blogues, sítios da Internet de professores, de sindicatos, de opinion  makers  e  está  lá  bem  claro  que  “só  a  rede  pública  promove  a  equidade  e  a igualdade  de  oportunidades, que só a rede pública é inclusiva e recebe todos os alunos”.

Porquê que isto acontece na minha cidade? Por muitas razões. Entre elas, porque boa parte das escolas da cidade quer limpar a sua face e faz tudo o que a lei consente para ficar bem na fotografia, para se desembaraçar dos “feios, porcos e maus”: alunos que repetem anos consecutivos (temos alunos que repetiram na mesma escola e em escolas diferentes, o mesmo ano de escolaridade, quatro vezes!), alunos que se portam mal nas escolas e são indisciplinados, alunos com idades avançadas e ainda no 2º ciclo e 3º ciclos, alunos que raramente têm uma retaguarda familiar de orientação e enquadramento mínimos, alunos sucessivamente suspensos e expulsos de outras escolas.

Não chega cumprir a lei, quando é evidente que a injustiça cresce diante dos nossos olhos. O problema é muito grave e já o seria se envolvesse um só aluno da cidade. Mas, desgraçadamente, envolve muitos. Depois, é grave porque está a criar dois tipos de escolas públicas. De um lado, as escolas públicas que rejeitam  este  tipo  de  alunos,  chamamos-­‐lhes  as  escolas  públicas  limpas,  do  outro,  as  escolas  que  os  aceitam porque, situadas em “bairros sociais problemáticos” (ex. Cerco, Viso, Leonardo Coimbra), estão a  ficar  sem  alunos,  na  sequência  da  debandada  gradual  da  “classe  média”,  que  apreende  bem  este  movimento  e  retira  os  seus  filhos  para  escolas  mais  limpas,  que  todos  sabem  quais  são,  mesmo ultrapassando  disposições  administrativas.  Assim,  este  segundo  tipo  de  escolas  da  cidade,  as  escolas  públicas  sujas,  que  a  designação  TEIP  só  ajuda  a  denegrir,  concentram  cada  vez  mais  alunos  com percursos escolares “irregulares”, como os que acima descrevo.

Além disto, há uma rejeição de alunos, mais sistemática, por parte das escolas secundárias, com base nas classificações e outros motivos burocráticos que se entende invocar apenas perante alguns alunos, para afastar os “indesejados”, pois podem estragar o perfil da escola e das turmas.

Toda a gente sabe e vê isto, mas olha para o lado. A cidade não atua com conhecimento, estratégia e determinação, apesar de até se proclamar “cidade educadora”!

O que me causa a maior preocupação é a ligeireza com que se fala destas nuvens sombrias que se formam e crescem, entre um cimbalino e um fino, como se tivesse de ser assim, como se a escola pública para todos  e  com  cada  um  fosse  um  projeto  deitado  às  urtigas  e  tivéssemos  ficado  prisioneiros  de  uma  fatalidade qualquer.

Não me resigno. O que assim é, pode ser bem diferente. A cidade do Porto dispõe de muitos milhares de servidores públicos devidamente qualificados e de muitas centenas de instituições sociais muito capazes, dotadas  de  recursos  adequados.  Se  é  verdade  que  “está  na  “natureza”  da  escola  reproduzir  as  desigualdades sociais produzindo as desigualdades escolares” (Dubet), e que a exclusão escolar ratifica ou mesmo provoca cada vez mais, pelo processo de democratização e de massificação escolar, a exclusão social, também é verdade que a “escola desempenha um papel autónomo na formação dos mecanismos de exclusão” (idem), ultrapassando uma função de simples reprodução das desigualdades sociais. Assim sendo, não estará na missão da educação escolar rever e alterar o tipo, a articulação e o resultado dos “efeitos” que lhe são próprios? E não haverá “capacidade instalada”, dinamismos interinstitucionais e interprofissionais que sejam capazes de cortar este mal pela raiz e acolher todos e cada um dos alunos da cidade?

Este  facto  real,  nu  e  cru,  tem  de  ser  pensado  (desconstruído  e  reconstruído)  no  espaço  público.  A  promessa  que  está  explícita  na  escola  democrática,  em  termos  de  equidade  e  de  justiça,  tem  de  ser reequacionada à luz dos factos e não das ideias feitas e das fantasias que os obnubilam. Há, nas próprias escolas  públicas,  capacidade  de  ver  e  construir  outro  caminho  que  não  o  da  rejeição.  Há  na  cidade  instituições disponíveis para se mobilizarem em torno deste objectivo de não deixar um só cidadão para trás. Não há crianças e jovens inensináveis, não há crianças e jovens não educáveis. Todos crescem e aprendem,  assim  saibamos  nós  proporcionar-­‐lhes  os  tempos,  as  oportunidades,  os  métodos  e  as  expectativas adequadas.

Se alguém disse que a consecução da promessa de uma escola democrática e justa era coisa simples e que bastaria proclamá-­‐la aos quatro ventos, enganou-­‐se e enganou-­‐nos. Não, ela requer muito trabalho, muita  luta,  ao  longo  de  muitos  anos,  com  debate  aberto,  partilhado,  com  estratégias  co-­‐construídas,  projetos  comuns  e  responsabilidades  assumidas,  com  determinação  e  persistência,  com  avaliação conjunta e reinvestimentos contínuos.

Não, as coisas não têm de prosseguir irresponsavelmente o seu curso. Em vez de construir guetos dentro e fora das escolas, reproduzindo a escola injusta, está ao nosso alcance reconstruir, institucionalmente e juntos, uma escola justa e democrática.

Os Conselhos Municipais de Educação existem para quê? Como e quem define a transições entre ciclos e a rede escolar à escala local? Como é que estas questões são tratadas nos projetos educativos das escolas? A segregação escolar nas escolas públicas tem mesmo de ser conhecida, estudada e banida.

Para isso, esta exclusão não pode continuar a ser uma realidade silenciosa e silenciada. Nem os media, nem os dirigentes políticos, locais e nacionais, ninguém pode dizer que ignora. Onde está a liberdade dos media? É uma luz que serve para quê, para colocar debaixo do alqueire, bem guardadinha, não vá o vento apagá-­‐la?

E o que diz o Ministério da Educação de tudo isto? Questionei um ex-­‐dirigente do ME que disse: sim, o Ministério sabe que acontece, mas parece assumir, sem o explicitar, que a existência de algumas escolas secundárias públicas de elite é uma condição para que o ensino público possa competir com o privado na captação de determinados estratos sociais.

É contra estas perspetivas e práticas das políticas públicas de educação que temos de descruzar os braços.

Isto acontece na minha cidade. E na sua, não se passa nada semelhante?

Por Joaquim Azevedo, In Público 20160905

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